A liberdade em Esaú e Jacó
Afinal qual dos dois gêmeos bíblicos conseguiu exercer mais a sua própria liberdade? Esaú, o caçador, que vivia correndo pelas matas na companhia do pai ou Jacó, o estudioso, que ficava a maior parte do tempo fechado na tenda protegido pela mãe? Onde existe mais liberdade? Em quem se lança à leitura ou em quem segue os rastros de uma caça? No eleito ou no excluído? No amor paterno ou no amor materno? O que limita mais? A inveja ou a fome? A verdade ou a mentira? A ética ou a fraude? Quem é mais livre? A razão ou a emoção? O irmão que perdoa ou o que pede perdão? Isaac ou Rebeca? O homem ou Deus? A realidade ou a ficção?
Esse trabalho não busca responder a todas essas questões com a profundidade que elas exigem. O tema é muito complexo, ambíguo e emaranhado para ser trabalhado em tão poucas linhas. Essas perguntas estão aqui para provocar discussão, tentar garimpar entre tantos lugares comuns, um possível olhar diferenciado sobre o drama dos filhos de Isaac e Rebeca, já estudado quase a exaustão pelos sábios do judaísmo.
Por que Jacó que trapaceou, mentiu e fraudou para roubar a primogenitura de Esaú foi o escolhido por Deus? Não é de hoje que essa pergunta gera polêmica e alimenta toda a ficção e toda a exegese que envolvem a labiríntica rede textual que compõe o midrash em torno do Gênesis, primeiro livro da Bíblia Hebraica.
Como podemos tratar da liberdade e do livre-arbítrio em Esaú e Jacó? Como concluiu Maimônides, assim como outros teólogos e filósofos judeus, Deus não predetermina o que fazemos; o ser humano é livre para agir como quiser e escolher as recompensas ou sofrer as consequências de suas escolhas. Afirma Maimônides em seu Mishnê Torá ( Leis de Arrependimento, 5:4):
“Se Deus decretou que uma pessoa deveria ser justa ou ímpia, ou se haveria alguma força inerente em sua natureza que a levaria de forma irresistível a uma má inclinação em particular (...)como Deus poderia ter nos ordenado através dos profetas: “faça isso e não aquilo, melhore seus modos e não siga seus maus impulsos”, quando o destino de uma pessoa já está decretado desde o início de sua existência?(...)Qual espaço deve haver para a Torá em sua totalidade? Por qual direito ou justiça Deus poderia punir os ímpios ou recompensar os justos? (...) Aquele que é Juiz em toda Terra não fará justiça?(Gênesis, 18:25)”. (Abraão para Deus no episódio de Sodoma).
Nos 13 princípios da fé, Maimônides também afirma “Creio plenamente que o Criador conhece todos os atos e pensamentos dos seres humanos, eis que está escrito: "Ele forma os corações de todos e percebe todas as suas ações" (Tehilim 33:15).
Mas para o filósofo judeu, quanto mais racional for o homem, mais livre ele será. Neste caso por ser Jacó mais culto e racional pode ser considerado mais livre que Esaú?
Para J.Fokkelman, os gêmeos de Rebeca “não foram degradados à condição de marionetes, nem tampouco sombreados pela predestinação; eles agem livremente por sua própria decisão. Não há como negar que eles têm a sua própria responsabilidade. O fato da vontade de Deus ser conhecida não priva as pessoas em Gn. 25 e 27 da sua independência e dignidade, não os alivia de sua responsabilidade de escolher entre o bem e o mal a cada momento e nós, por nossa vez, podemos (e não devemos) determinar se eles vivem de acordo com a vontade de Deus”.
Voltemos a uma das perguntas lançadas no começo deste texto sobre quem limita mais? A realidade ou a ficção? Consideremos que Esaú, por ser o considerado o herdeiro político do pai, seja a realidade e Jacó, a ficção. Um embate complexo e ambíguo, cheio de segundas intenções e entrelinhas onde os oblíquos caminhos do desejo se cruzam e iluminam em cheio o que vai lá dentro da alma humana, como afirma a pesquisadora Daisy Wajnberg no seu livro O Gosto da Glosa: Esaú e Jacó na Tradição Judaica.
Enquanto a primogenitura é apenas alvo dos sonhos de Jacó, ele vive imaginando-se no lugar do irmão, portanto, vive na ficção em pleno coração do Gênesis, pulsando, a espreita, esperando o momento certo para o golpe calculado. Comportamento compartilhado com Rebeca, a mãe que também vivia na ficção acreditando ser Jacó, como disse o Oráculo, “o predestinado por Deus para ser o pai do povo escolhido”.
Em 1981, Robert Alter destacava em A Arte da Narrativa Bíblica, o aspecto inquietante do personagem: “Jacó [...] está em vias de realizar um ato, senão de enganação, ao menos de astuto calculismo, e a escolha de um epíteto sugerindo inocência como introdução para o episódio é colocada para nos dar uma pausa, para fazer-nos refletir sobre a natureza moral de Jacó [...]”
Mas também podemos pensar ao contrário: É Isaac que vive na ficção imaginando que Esaú é o filho que sempre desejou; filho que valoriza e faz de tudo para ser o seu sucessor. O que não é bem assim. Afinal, ao primeiro sinal de fome ele aceitou trocar sua primogenitura por um prato de comida. Esaú, então, também não viveria uma vida fora da realidade, já que ele aparenta não ter ideia do tamanho da responsabilidade que a primogenitura lhe impõe?
Espetáculo de ambiguidades, a saga de Esaú e Jacó nos leva ao mundo misterioso e mágico da subjetividade. Passaporte para a ficção, como afirmou Robert Alter: “por estranho que pareça a princípio, vou sustentar que a prosa de ficção é a melhor rubrica geral para classificar as narrativas bíblicas”.
Mas como explicar, então, que a Bíblia consiga evocar personagens de tamanha profundidade e complexidade como Rebeca, Jacó, José, Judá, Tamar, Moisés, Saul, Davi e Rute, valendo-se de meios aparentemente tão parcos e mesmo rudimentares? Afinal, essas personagens, mais que portadoras de um imperativo divino, ficaram gravadas de maneira indelével na imaginação de centenas de gerações como individualidades muito vivas.
Para Alter, “a narrativa bíblica não contém análises minuciosas de causas ou razões, nem entra em detalhes a respeito de processos psicológicos; somente nos concede indicações mínimas acerca dos sentimentos, atitudes e intenções, e oferece-nos pouquíssimas informações sobre o aspecto físico, a gesticulação e os trejeitos, as roupas e os instrumentos usados pelas personagens, o ambiente físico em que elas cumprem seus destinos”.
Metáfora para uma mensagem sagrada? Código para dar um sentido à existência da humanidade? Ou simplesmente, a palavra de Deus? A que veio a narrativa bíblica? Seria o “dinossauro” no processo evolutivo do romance?
Histórias reais ou prosa de ficção historicizada; frutos da imaginação dos midrashistas ou criação dos primeiros contadores de história; a quem atribuir a liberdade de Esaú e Jacó e de todas personagens que os cercam? Teriam mais liberdade sendo mais personagens criadas por Deus ou imaginadas pelos homens? Se o caçula foi instruído por Deus para ser corrupto, por que não pensar que o mal pode vencer no final quando Deus decide brincar de bandido? Ou será que Jacó era mesmo o primeiro fruto da primogênita gota do sêmen de Isaac? Portanto, mais que merecedor da passividade divina diante do seu plano para enganar o próprio pai.
Nos 13 princípios da fé, Maimônides também afirma “Creio plenamente que o Criador conhece todos os atos e pensamentos dos seres humanos, eis que está escrito: "Ele forma os corações de todos e percebe todas as suas ações" (Tehilim 33:15).
Mas para o filósofo judeu, quanto mais racional for o homem, mais livre ele será. Neste caso por ser Jacó mais culto e racional pode ser considerado mais livre que Esaú?
Para J.Fokkelman, os gêmeos de Rebeca “não foram degradados à condição de marionetes, nem tampouco sombreados pela predestinação; eles agem livremente por sua própria decisão. Não há como negar que eles têm a sua própria responsabilidade. O fato da vontade de Deus ser conhecida não priva as pessoas em Gn. 25 e 27 da sua independência e dignidade, não os alivia de sua responsabilidade de escolher entre o bem e o mal a cada momento e nós, por nossa vez, podemos (e não devemos) determinar se eles vivem de acordo com a vontade de Deus”.
Voltemos a uma das perguntas lançadas no começo deste texto sobre quem limita mais? A realidade ou a ficção? Consideremos que Esaú, por ser o considerado o herdeiro político do pai, seja a realidade e Jacó, a ficção. Um embate complexo e ambíguo, cheio de segundas intenções e entrelinhas onde os oblíquos caminhos do desejo se cruzam e iluminam em cheio o que vai lá dentro da alma humana, como afirma a pesquisadora Daisy Wajnberg no seu livro O Gosto da Glosa: Esaú e Jacó na Tradição Judaica.
Enquanto a primogenitura é apenas alvo dos sonhos de Jacó, ele vive imaginando-se no lugar do irmão, portanto, vive na ficção em pleno coração do Gênesis, pulsando, a espreita, esperando o momento certo para o golpe calculado. Comportamento compartilhado com Rebeca, a mãe que também vivia na ficção acreditando ser Jacó, como disse o Oráculo, “o predestinado por Deus para ser o pai do povo escolhido”.
Em 1981, Robert Alter destacava em A Arte da Narrativa Bíblica, o aspecto inquietante do personagem: “Jacó [...] está em vias de realizar um ato, senão de enganação, ao menos de astuto calculismo, e a escolha de um epíteto sugerindo inocência como introdução para o episódio é colocada para nos dar uma pausa, para fazer-nos refletir sobre a natureza moral de Jacó [...]”
Mas também podemos pensar ao contrário: É Isaac que vive na ficção imaginando que Esaú é o filho que sempre desejou; filho que valoriza e faz de tudo para ser o seu sucessor. O que não é bem assim. Afinal, ao primeiro sinal de fome ele aceitou trocar sua primogenitura por um prato de comida. Esaú, então, também não viveria uma vida fora da realidade, já que ele aparenta não ter ideia do tamanho da responsabilidade que a primogenitura lhe impõe?
Espetáculo de ambiguidades, a saga de Esaú e Jacó nos leva ao mundo misterioso e mágico da subjetividade. Passaporte para a ficção, como afirmou Robert Alter: “por estranho que pareça a princípio, vou sustentar que a prosa de ficção é a melhor rubrica geral para classificar as narrativas bíblicas”.
Mas como explicar, então, que a Bíblia consiga evocar personagens de tamanha profundidade e complexidade como Rebeca, Jacó, José, Judá, Tamar, Moisés, Saul, Davi e Rute, valendo-se de meios aparentemente tão parcos e mesmo rudimentares? Afinal, essas personagens, mais que portadoras de um imperativo divino, ficaram gravadas de maneira indelével na imaginação de centenas de gerações como individualidades muito vivas.
Para Alter, “a narrativa bíblica não contém análises minuciosas de causas ou razões, nem entra em detalhes a respeito de processos psicológicos; somente nos concede indicações mínimas acerca dos sentimentos, atitudes e intenções, e oferece-nos pouquíssimas informações sobre o aspecto físico, a gesticulação e os trejeitos, as roupas e os instrumentos usados pelas personagens, o ambiente físico em que elas cumprem seus destinos”.
Metáfora para uma mensagem sagrada? Código para dar um sentido à existência da humanidade? Ou simplesmente, a palavra de Deus? A que veio a narrativa bíblica? Seria o “dinossauro” no processo evolutivo do romance?
Histórias reais ou prosa de ficção historicizada; frutos da imaginação dos midrashistas ou criação dos primeiros contadores de história; a quem atribuir a liberdade de Esaú e Jacó e de todas personagens que os cercam? Teriam mais liberdade sendo mais personagens criadas por Deus ou imaginadas pelos homens? Se o caçula foi instruído por Deus para ser corrupto, por que não pensar que o mal pode vencer no final quando Deus decide brincar de bandido? Ou será que Jacó era mesmo o primeiro fruto da primogênita gota do sêmen de Isaac? Portanto, mais que merecedor da passividade divina diante do seu plano para enganar o próprio pai.
Jacó numa prisão chamada Rebeca
O conhecimento aliado aos bons encontros também tornam o homem livre, afirma Espinosa. Mas existiram bons encontros entre os Esaú e Jacó? Houve algum momento de alegria e bom humor entre os gêmeos?
Em seu Tratado Político, Espinosa recusa que a liberdade possa ser explicada pela vontade e pela contingência:
“O homem é livre na exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da natureza humana [...], a liberdade não se confunde com a contingência. E porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade. Assim, quando consideramos um homem como livre não podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem [...]. Portanto, aquele que existe e age por necessidade de sua própria natureza, age livremente[...]. A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe”.
Se considerarmos esse pensamento de Espinosa como podemos vislumbrar liberdade nos filhos de Rebeca e Isaac? Qual seria a verdadeira natureza de Jacó? E de Esaú? Ao trapacear, Jacó estaria agindo pela necessidade de sua própria natureza ou influenciado pela natureza de Rebeca?
A filosofia espinosana afirma que Deus não poderia ter criado o mundo ou qualquer substância. Ela também nega ao homem a ampla e irrestrita liberdade de ação e escolha.
Como o ser humano pode ser livre se para Espinosa ele se expressa de “maneira certa e determinada”a essência de Deus? Segundo afirma Marilena Chauí, uma das maiores estudiosas de Espinosa no Brasil, no seu mais recente livro Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa, o filósofo afirma, frequentemente, que os homens têm a ilusão do livre-arbítrio porque são conscientes de suas volições ( força de vontade, processo cognitivo pelo qual um individuo decide praticar uma ação em particular), e de suas ações, mas são ignorantes das causas de seus apetites e desejos. ( CHAUI, 2011, p.83).
Considerando a filosofia da ética da alegria, da felicidade, do contentamento intelectual de Espinosa, quem foi mais livre: Esaú ou Jacó? Eles poderiam ser livres num mundo onde, segundo Espinosa, somos a expressão de Deus? Deus faria trapaças? Mentiria e jogaria sujo?
Será possível encontrar e quantificar os lampejos de liberdade que aparecem nessa narrativa fundamental encravada no coração do Gênesis considerando que antes mesmo de nascer, os gêmeos de Isaac e Rebeca já tinham o destino anunciado por Deus:
21. E orou Isaac ao Eterno, em frente a sua mulher( que orava também) porque era estéril; atendeu o Eterno e concebeu Rebeca, sua mulher.
22. E lutaram os filhos no seu ventre; e ela disse: “Se é assim, por que desejei isso, eu?”E foi consultar o Eterno.
23. E disse-lhe o Eterno: “Duas nações há no teu ventre, e dois reinos de tuas entranhas se dividirão; uma nação, mais que outra nação se fortalecerá! A maior servirá a menor."
A resposta de Deus a Rebeca por meio do oráculo, segundo Nahum Sarna, (livro Understanding Gênesis. Nova York; Shocken Books, 1970.p.183), mostra que Deus já declara sua escolha por Jacó, divinamente designado para ser o único herdeiro da aliança estabelecida antes com Abraão e Isaac, mesmo que Esaú vença a luta uterina e tecnicamente seja o primogênito. Assim, conclui ele, “o oráculo tem a intenção de não deixar dúvidas de que Jacó foi predestinado por Deus para ser o pai do Povo Escolhido”.
Veja como um pequeno fragmento midráshico interpreta o fato de Esaú ter nascido primeiro:
“Uma matrona perguntou ao rabino Yosi B. Halafta: por que Esaú saiu primeiro? Por que a primeira gota de sêmen era a de Jacó, ele lhe respondeu. Pois considere: se colocar dois diamantes num tubo, não é o que foi colocado primeiro que sairá por último? Assim, a primeira gota foi aquela que formou Jacó. (MIDRASH RABAT, p. 563).
Por ser obcecado pela primogenitura, não seria Jacó menos livre do que Esaú? Até que ponto essa obsessão se transformou numa implacável prisão para Jacó? E por outro lado, até que ponto o desprezo pela primogenitura e a falta de informação e cultura também não foram limitadores da liberdade de Esaú? Quem roubou mais a liberdade dos gêmeos? Rebeca, a mãe apaixonada pelo filho caçula ou Isaac, o pai admirador da bravura do primogênito? E entre os irmãos? Quem mais limitava a liberdade do outro? Jacó que nasceu com uma das mãos agarradas ao calcanhar de Esaú e queria o seu lugar ou Esaú que conseguiu nascer primeiro e despertava a inveja em Jacó?
Por ter se valido de artimanhas para roubar a primogenitura de Esaú, Jacó foi mais ou menos livre? E Rebeca teve sua liberdade limitada pela culpa por ter traído o seu próprio filho e a confiança do marido? Até que ponto o amor exagerado pelo caçula mutilou a liberdade de Rebeca? E Isaac? Faltou-lhe liberdade para desmascarar Jacó?
Para responder a todas essas perguntas não podemos cair no julgamento fácil, da afirmação moral pura e simples. Como afirmou a pesquisadora Daisy Wajnberg:
Embora Deus tenha contrariado os costumes patriarcais que indicavam o primogênito como sucessor, Jacó se posta diante do pai velho e cego, engana-o e rouba a bênção paterna que vem confirmá-lo no lugar do privilegiado. Jacó usurpa o lugar de Esaú segundo as leis humanas e o faz de modo mais impressionante possível. Há uma luz inquietante e ambígua na história. Depois do vaticínio inicial, Deus não mais comparece(...) A questão é de ordem ética. Será esse Jacó trangressivo o grande ancestral do povo de Israel? Que pai é esse que parece esgueirar-se da lei? (WAJNBERG, 2004, p.19).
A história de Esaú e Jacó pertence ao ciclo de Jacó e relata como ele se tornou o último dos patriarcas. Não é por acaso que essa narrativa se situa no centro do livro (Gn. 27:40), segundo a contagem de versículos dos massoretas. Esaú, o mais velho é deslocado por Jacó no seu direito à herança e sucessão. Primeiramente, através de uma transação, Esaú vende seu direito de primogênito ao irmão em troca de comida(Gn. 25).
Em seu Tratado Político, Espinosa recusa que a liberdade possa ser explicada pela vontade e pela contingência:
“O homem é livre na exata medida em que tem o poder para existir e agir segundo as leis da natureza humana [...], a liberdade não se confunde com a contingência. E porque a liberdade é uma virtude ou perfeição, tudo quanto no homem decorre da impotência não pode ser imputado à liberdade. Assim, quando consideramos um homem como livre não podemos dizer que o é porque pode deixar de pensar ou porque possa preferir um mal a um bem [...]. Portanto, aquele que existe e age por necessidade de sua própria natureza, age livremente[...]. A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe”.
Se considerarmos esse pensamento de Espinosa como podemos vislumbrar liberdade nos filhos de Rebeca e Isaac? Qual seria a verdadeira natureza de Jacó? E de Esaú? Ao trapacear, Jacó estaria agindo pela necessidade de sua própria natureza ou influenciado pela natureza de Rebeca?
A filosofia espinosana afirma que Deus não poderia ter criado o mundo ou qualquer substância. Ela também nega ao homem a ampla e irrestrita liberdade de ação e escolha.
Como o ser humano pode ser livre se para Espinosa ele se expressa de “maneira certa e determinada”a essência de Deus? Segundo afirma Marilena Chauí, uma das maiores estudiosas de Espinosa no Brasil, no seu mais recente livro Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa, o filósofo afirma, frequentemente, que os homens têm a ilusão do livre-arbítrio porque são conscientes de suas volições ( força de vontade, processo cognitivo pelo qual um individuo decide praticar uma ação em particular), e de suas ações, mas são ignorantes das causas de seus apetites e desejos. ( CHAUI, 2011, p.83).
Considerando a filosofia da ética da alegria, da felicidade, do contentamento intelectual de Espinosa, quem foi mais livre: Esaú ou Jacó? Eles poderiam ser livres num mundo onde, segundo Espinosa, somos a expressão de Deus? Deus faria trapaças? Mentiria e jogaria sujo?
Será possível encontrar e quantificar os lampejos de liberdade que aparecem nessa narrativa fundamental encravada no coração do Gênesis considerando que antes mesmo de nascer, os gêmeos de Isaac e Rebeca já tinham o destino anunciado por Deus:
21. E orou Isaac ao Eterno, em frente a sua mulher( que orava também) porque era estéril; atendeu o Eterno e concebeu Rebeca, sua mulher.
22. E lutaram os filhos no seu ventre; e ela disse: “Se é assim, por que desejei isso, eu?”E foi consultar o Eterno.
23. E disse-lhe o Eterno: “Duas nações há no teu ventre, e dois reinos de tuas entranhas se dividirão; uma nação, mais que outra nação se fortalecerá! A maior servirá a menor."
A resposta de Deus a Rebeca por meio do oráculo, segundo Nahum Sarna, (livro Understanding Gênesis. Nova York; Shocken Books, 1970.p.183), mostra que Deus já declara sua escolha por Jacó, divinamente designado para ser o único herdeiro da aliança estabelecida antes com Abraão e Isaac, mesmo que Esaú vença a luta uterina e tecnicamente seja o primogênito. Assim, conclui ele, “o oráculo tem a intenção de não deixar dúvidas de que Jacó foi predestinado por Deus para ser o pai do Povo Escolhido”.
Veja como um pequeno fragmento midráshico interpreta o fato de Esaú ter nascido primeiro:
“Uma matrona perguntou ao rabino Yosi B. Halafta: por que Esaú saiu primeiro? Por que a primeira gota de sêmen era a de Jacó, ele lhe respondeu. Pois considere: se colocar dois diamantes num tubo, não é o que foi colocado primeiro que sairá por último? Assim, a primeira gota foi aquela que formou Jacó. (MIDRASH RABAT, p. 563).
Por ser obcecado pela primogenitura, não seria Jacó menos livre do que Esaú? Até que ponto essa obsessão se transformou numa implacável prisão para Jacó? E por outro lado, até que ponto o desprezo pela primogenitura e a falta de informação e cultura também não foram limitadores da liberdade de Esaú? Quem roubou mais a liberdade dos gêmeos? Rebeca, a mãe apaixonada pelo filho caçula ou Isaac, o pai admirador da bravura do primogênito? E entre os irmãos? Quem mais limitava a liberdade do outro? Jacó que nasceu com uma das mãos agarradas ao calcanhar de Esaú e queria o seu lugar ou Esaú que conseguiu nascer primeiro e despertava a inveja em Jacó?
Por ter se valido de artimanhas para roubar a primogenitura de Esaú, Jacó foi mais ou menos livre? E Rebeca teve sua liberdade limitada pela culpa por ter traído o seu próprio filho e a confiança do marido? Até que ponto o amor exagerado pelo caçula mutilou a liberdade de Rebeca? E Isaac? Faltou-lhe liberdade para desmascarar Jacó?
Para responder a todas essas perguntas não podemos cair no julgamento fácil, da afirmação moral pura e simples. Como afirmou a pesquisadora Daisy Wajnberg:
Embora Deus tenha contrariado os costumes patriarcais que indicavam o primogênito como sucessor, Jacó se posta diante do pai velho e cego, engana-o e rouba a bênção paterna que vem confirmá-lo no lugar do privilegiado. Jacó usurpa o lugar de Esaú segundo as leis humanas e o faz de modo mais impressionante possível. Há uma luz inquietante e ambígua na história. Depois do vaticínio inicial, Deus não mais comparece(...) A questão é de ordem ética. Será esse Jacó trangressivo o grande ancestral do povo de Israel? Que pai é esse que parece esgueirar-se da lei? (WAJNBERG, 2004, p.19).
A história de Esaú e Jacó pertence ao ciclo de Jacó e relata como ele se tornou o último dos patriarcas. Não é por acaso que essa narrativa se situa no centro do livro (Gn. 27:40), segundo a contagem de versículos dos massoretas. Esaú, o mais velho é deslocado por Jacó no seu direito à herança e sucessão. Primeiramente, através de uma transação, Esaú vende seu direito de primogênito ao irmão em troca de comida(Gn. 25).
29. E cozinhou Jacó um guizado; e veio Esaú do campo e ele estava cansado. 30. E disse Esaú a Jacó: “Enche minha boca, rogo-te, desta(lentilha) vermelha, que estou cansado”.
31. E disse Jacó: “Vende-me, como o dia (claramente) tua primogenitura a mim”.
32. E disse Esaú: “Eis que caminho para a morte, e para que quero a primogenitura?”
33. E disse Jacó: “Jura-me como o dia”. E jurou-lhe, e vendeu sua primogenitura a Jacó.
34. E Jacó deu a Esaú pão e cozido de lentilhas; e comeu e bebeu, levantou-se e foi-se; e desprezou Esaú a primogenitura.
31. E disse Jacó: “Vende-me, como o dia (claramente) tua primogenitura a mim”.
32. E disse Esaú: “Eis que caminho para a morte, e para que quero a primogenitura?”
33. E disse Jacó: “Jura-me como o dia”. E jurou-lhe, e vendeu sua primogenitura a Jacó.
34. E Jacó deu a Esaú pão e cozido de lentilhas; e comeu e bebeu, levantou-se e foi-se; e desprezou Esaú a primogenitura.
Aqui vale uma observação: Esaú foi sempre a figura provedora por excelência que trazia a caça à boca do pai, e claro, esse era o seu maior trunfo junto ao pai. Agora esse Esaú caminha na direção contrária e suplica por comida ao irmão. Se Jacó nascera sob o signo da ação, de agarrar o pé do irmão, perseguindo-o e querendo algo que era de Esaú, agora há uma inversão e Esaú vai atrás de Jacó. (WAJNBERG, 2004, p.122 e 123).
Logo mais a frente, em Gênesis 27, através de uma fraude, Jacó usurpa do irmão a posição privilegiada de sucessor, ganhando a bênção paterna que o confirma como herdeiro (Gn. 27).
6. E Rebeca falou a Jacó, seu filho, dizendo: “Eis que escutei teu pai falando com Esaú, teu irmão, dizendo:
7. Traz-me caça e faz-me manjares e comerei, e te abençoarei diante do Eterno, antes de minha morte.
8. E agora, meu filho, escuta minha voz naquilo que te ordeno.
9. Vai, rogo, ao rebanho, e toma para mim, de lá, duas boas crias de cabras, e farei delas manjares para teu pai, como ele gosta.
10. E trarás a teu pai, e comerá, para que te bendiga antes de sua morte.
11. E disse Jacó a Rebeca, sua mãe: Eis que Esaú, meu irmão, é homem peludo e eu sou homem liso:
12. Porventura me apalpará meu pai e serei aos seus olhos como burlador e trarei sobre mim maldição, e não benção.
13. E disse-lhe sua mãe: Sobre mim a tua maldição, meu filho; somente escuta minha voz, e anda, toma para mim.
14. E foi-se, e tomou e trouxe para sua mãe; e fez sua mãe manjares como agradava a seu pai.
15. E tomou Rebeca as roupas de Esaú, seu filhos maior, as limpas que ela tinha em casa, e vestiu Jacó seu filho, o menor.
16. E as peles dos cabritos fez vestir sobre suas mãos e sobre a lisura de seu pescoço.
17. E pôs manjares e o pão que fez nas mãos de seu filho Jacó.
18. E veio a seu pai e disse: “Meu pai”! Eis-me aqui. Quem és tu, meu filho?
19. E disse Jacó a seu pai: Eu sou Esaú, teu primogênito; fiz como me falaste; vem, rogo, senta-te e come de minha caça para que me bendiga tua alma.
Nessa passagem é importante destacar que, se a venda da primogenitura ocorrera por iniciativa única e exclusiva de Jacó, surge agora uma espécie de atenuante para a suas segundas/primeiras intenções. Agora é a mãe, com seu claro favorecimento ao filho caçula, quem comanda essa cena e instiga Jacó para que tome fraudulentamente o lugar do irmão. Esta dianteira tomada pela mãe, segundo Daisy Wajnberg, “vem funcionando como álibi para Jacó, apagando suas possíveis culpas”.
O narrador nos mostra um Jacó submisso, seguindo estritamente as ordens de Rebeca. E esta, por sua vez, somente daria continuidade aos desígnios de Deus, anunciados no oráculo do início da história. Num contínuo repasse de responsabilidades, Jacó obedece à Rebeca, que obedece a Deus. Rebeca, que toma o filho menor como objeto do seu amor, se revelaria assim como possível desdobramento do tema da escolha divina, como afirma Leslie Brisman “nesta história, as ações de Jacó têm a bênção do favor divino “naturalizado” enquanto favoritismo materno”. O tema da escolha divina já se apresentara tanto em Caim e Abel, como Ismael e Isaac. Não esqueçamos de Sara que também conspirou contra Ismael para favorecer Isaac.
O Esaú midráshico quase se torna um Caim redivivo, segundo a pesquisadora Daisy Wajnberg. Na interpretação rabínica, desde Gênesis Rabat ( escrito ao redor do ano 400 da era comum), é visível o caráter ideológico da leitura rabínica da Bíblia. Os irmãos midráshicos não coincidem exatamente com Esaú e Jacó de Gênesis – eles representam, sobretudo, os protótipos segundo os quais se confrontam Roma e Israel. Para a Wajnberg, os rabinos re-apresentam os gêmeos bíblicos sob nova faceta, fazendo incidir sobre seus rostos a luz e a sombra das questões de sua contemporaneidade.
Lentilhas da Liberdade
Em seu livro Homens sábios e suas histórias, Elie Wiesel pergunta: Mas por que Rebeca detesta tanto Esaú? O autor tenta encontrar a resposta em Rashi que explica citando os sábios talmúdicos: “ durante a gravidez Rebeca sentia um dos gêmeos se mexerem quando passava por determinado local. Nas proximidades de uma casa de estudos, quem se mexia era Jacó; nas proximidades de um templo de idólatras, era Esaú; Em outras palavras, eles começaram a brigar já no ventre materno. Intrigada Rebeca procurou Shem, o diretor da famosa yeshiva que levava seu nome. Sua explicação foi clara: cada gêmeo fundaria uma nação, e os dois não conseguiriam viver juntos; um só ascenderia quando o outro decaísse. O progresso de um significaria o declínio do outro. Por isso a piedosa esposa de Isaac favoreceu o caçula. E Deus também. O texto não prenuncia que “o mais velho servira ao mais novo”?”
Elie Wiesel se declara, embaraçosamente, simpático a Esaú. Vejamos o incidente do direito à primogenitura. Wiesel pergunta: um homem bom não hesitaria em repartir a refeição com um irmão. Por que Jacó impõe uma condição e uma condição exorbitante ainda por cima?
No entanto, segue Wiesel, o midrash critica Esaú e não Jacó. Naturalmente Esaú come e bebe para aplacar a fome e a sede. Mas o que diz o Midrash: “ele levava consigo um bando de arruaceiros para beberem juntos”. Podemos perguntar: onde o midrash encontrou pelo menos um fiapo de indício de que Esaú não estava sozinho neste momento? Por que os comentaristas são tão severos com ele? Não pronunciam uma única palavra negativa sobre a estratégia comercial de Jacó. Toda a crítica se volta contra Esaú.
O rabino Yohanan chega a afirmar que nesse dia, quando comprou um prato de lentilha, para matar a fome, Esaú cometeu 5 pecados: violentou a noiva de outro jovem, matou um homem, negou a existência de Deus, ridicularizou a ressurreição dos mortos e abriu mão do seu direito de primogênito. Francamente, contesta Wiesel, tudo isso num único dia? Em que fato o rabino Yohanan se baseou para fazer tais acusações. Wiesel afirma que, em geral, Esaú parece alvo de calúnias. Por exemplo, enquanto Jacó fica em casa, Esaú adora caçar; O termo usado é tzayid, que literalmente significa caçar. Para os comentaristas do Talmude, porém, tzayid tem outro significado: indica que Esaú era falso, mentia para o pai a fim de agradá-lo, cinicamente fingia uma devoção exagerada...
Para Daisy Wajnberg, “um autêntico coro de vozes rabínicas acusa Esaú, pois aquele que era o homem do campo, aqui “s dá livremente a todos como o campo”, diz R. Hiyya. A insinuação é que Esaú “era muito promíscuo”, conforme esclarece o tradutor. Adiante, outra prática sexual mais aberrante é levantada contra o personagem, na suposição da sua homossexualidade - e o povo agora recorre a Deus na queixa de ter de se submeter a este “que é abusado de forma imoral, como mulher”. Num recurso alusivo que parte de elementos da história contemporânea, Esaú aqui representaria a Roma “que praticava a sodomia tão frequentemente”.
Depois de uma longa separação, os gêmeos se reencontram, se abraçam e choram. Mas Wiesel chama atenção para o trecho do midrash que insiste em afirmar que as lágrimas de Esaú eram falsas, que seu comportamento afetuoso era hipócrita. Wiesel então questiona: por que então, Esaú chorou? Por que tentou morder o irmão no pescoço ao invés de beijá-lo e não pode fazê-lo por que Deus converteu o pescoço de Jacó em marfim ou mármore? Esaú quebrou os dentes? Esaú era totalmente inocente? Nesse caso, Jacó seria totalmente culpado? Wiesel afirma que essa questão é bem mais complexa porque, na realidade, Jacó não mentiu ao pedir as bênçãos paternas, pois as adquirira legalmente do irmão.
Se não bastasse o midrash, a pesquisadora Daisy Wajenberg também afirma que há momentos em que o próprio narrador é flagrado num julgamento explícito sobre as personagens. O problema incide sobre o adjetivo usado para Jacó- tam, cujo campo semântico comporta dois pólos. A palavra tam pode significar “simples”, “tranquilo”, de um lado. No outro sentido, tam traz forte carga valorativa ao se reerir a uma qualidade de cunho moral – a tradução seria “íntegro”, “honrado”, “honesto”, “justo”, “inocente”, segundo Alonso Shokel. Desta forma o narrador tenta mostrar que Jacó que habita as tendas, teria um grau civilizatório mais avançado em relação ao Esaú caçador. Este adjetivo tam ocorre nesse trecho e noutras 10 vezes, sempre no mesmo sentido, segundo o dicionário Brown-Driver-Briggs.
No livro A Alma Imoral, o rabino Nilton Bonder, outro pensador contemporâneo, afirma: “Jacó é o símbolo das transgressões que todos os seus filhos e descendentes repetirão(...) Não há dúvida de que o texto bíblico utiliza a questão da “primogenitura” de forma simbólica. Roubar a primogenitura é o que Jacó faz, o que seu filho José faz e o que se tornou o verdadeiro estereótipo do judeu. Ao longo dos tempos, povos que se consideram herdeiros “do nome da história”da civilização encontraram no judeu um usurpador da “primogenitura”. Segundo Bonder, “ Jacó representa a escolha de um novo “correto”na sua relação com um igual, com um outro”.
Voltando à filosofia espinosana calcada na ética da alegria e da felicidade. Com base nas idéias de Espinosa Esaú foi ou não foi mais livre do que Jacó? Quem era o mais feliz dos irmãos? O mais velho que talvez se sentisse desprezado pela mãe e por isso procurava viver longe de casa caçando com o pai ou o mais novo que tinha o pleno amor da mãe, mas vivia insatisfeito sonhando em ser o outro, desejando roubar a primogenitura de Esaú? Considerando a afirmação espinosana de que “a liberdade não é o livre-arbítrio da vontade, seja essa divina ou humana (...) a liberdade não é a escolha entre alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com a sua essência” (...) “Liberdade e necessidade não se opõe, mas de definem reciprocamente: são a afirmação da autodeterminação do agente quando sua ação exprime aquilo que ele necessariamente é por essência”. (CHAUI, 2011, p.69 e p. 100)., qual dos gêmeos foi mais livre? Qual deles agiu mais de acordo com sua essência? Jacó ou Esaú?
Entendo que Jacó foi livre o suficiente para praticar a transgressão. Teve a força e astúcia, o frio calculismo e a ardente ambição, o torto e o direito, o transgressivo e o meritório. Mas a sua obsessão pela primogenitura o levou para uma prisão ainda maior: o cárcere da herança divina. Ele tornou-se sucessor político do pai, chefe do clã, trouxe para ele a responsabilidade simbólica da continuidade religiosa, ou seja, de manter o pacto renovado de cada patriarca com Deus. Tornou-se Israel:
“E Jacó foi deixado só, e alguém lutou com ele até o surgir da aurora. Quando viu que não sobrepujava Jacó, esse alguém o atingiu no encaixe da coxa. Ele disse: “deixe-me ir, pois já rompeu o dia”. Mas Jacó respondeu: “Eu não te deixarei se não me abençoares”. Ele lhe respondeu: “Qual o teu nome?” – “Jacó”- respondeu. Ele retomou: “Não se chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e prevaleceste”. (Gênesis, 32:25-30).
Jacó agiu sim em conformidade com sua essência, mas até que ponto a essência de Jacó lhe era mesmo natural? Por ser o eleito sua essência já não estaria impregnada dos desejos de Deus? Até onde vão os anseios divinos e os do caçula de Rebeca na essência de Jacó? Acredito que Jacó acabou presidiário de sua própria essência desde o instante que foi gerado no útero da mãe.
Por isso, considero que Esaú foi o que mais conheceu e se deixou voar nas asas da liberdade. Mais livre no útero materno, conseguiu nascer primeiro mesmo com o irmão lhe segurando o calcanhar. Também foi bem mais ousado e libertário que Jacó. Mesmo sentindo-se rejeitado pela mãe e infeliz dentro do lar, buscou a felicidade relacionando-se com a natureza; sabendo que era o primogênito e o papel sagrado que tinha nas mãos, surpreendeu a si mesmo, numa ousada atitude de auto-traição que nos remete a passagem bíblica onde Moisés se aproxima do faraó do Egito para pedir que liberte o seu povo. Para atender ao pedido, o faraó lança um desafio: “Mostre-me algo que te surpreenda”. Os rabinos logo perguntam: “Não deveria ser: “mostre-me algo com que eu me surpreenda?” E logo respondem, esclarecendo que o faraó era o homem muito esperto e vivido e que sua pergunta estava correta. Se Moisés é alguém que deve ser respeitado tem que mostrar que é alguém que se surpreende e não alguém que surpreende os outros.
Surpreender-se é, na realidade, a maior prova de poder de um ser humano, afirma Nilton Bonder. Surpreender os outros é fazer uso dos nossos truques já dominados, surpreender a si mesmo é ser um mago diante daquele que nos julgávamos ser.” Trair a nós mesmo e nos surpreender conosco é uma demonstração de grande força e liberdade. A alma se deleita nas conquistas do assombramento pela surpresa, afirma Bonder.
Esaú subverte, surpreende e trai a si mesmo e, ao trocar Deus por um prato de lentilhas, torna-se, verdadeiramente, um homem pleno de liberdade.
Logo mais a frente, em Gênesis 27, através de uma fraude, Jacó usurpa do irmão a posição privilegiada de sucessor, ganhando a bênção paterna que o confirma como herdeiro (Gn. 27).
6. E Rebeca falou a Jacó, seu filho, dizendo: “Eis que escutei teu pai falando com Esaú, teu irmão, dizendo:
7. Traz-me caça e faz-me manjares e comerei, e te abençoarei diante do Eterno, antes de minha morte.
8. E agora, meu filho, escuta minha voz naquilo que te ordeno.
9. Vai, rogo, ao rebanho, e toma para mim, de lá, duas boas crias de cabras, e farei delas manjares para teu pai, como ele gosta.
10. E trarás a teu pai, e comerá, para que te bendiga antes de sua morte.
11. E disse Jacó a Rebeca, sua mãe: Eis que Esaú, meu irmão, é homem peludo e eu sou homem liso:
12. Porventura me apalpará meu pai e serei aos seus olhos como burlador e trarei sobre mim maldição, e não benção.
13. E disse-lhe sua mãe: Sobre mim a tua maldição, meu filho; somente escuta minha voz, e anda, toma para mim.
14. E foi-se, e tomou e trouxe para sua mãe; e fez sua mãe manjares como agradava a seu pai.
15. E tomou Rebeca as roupas de Esaú, seu filhos maior, as limpas que ela tinha em casa, e vestiu Jacó seu filho, o menor.
16. E as peles dos cabritos fez vestir sobre suas mãos e sobre a lisura de seu pescoço.
17. E pôs manjares e o pão que fez nas mãos de seu filho Jacó.
18. E veio a seu pai e disse: “Meu pai”! Eis-me aqui. Quem és tu, meu filho?
19. E disse Jacó a seu pai: Eu sou Esaú, teu primogênito; fiz como me falaste; vem, rogo, senta-te e come de minha caça para que me bendiga tua alma.
Nessa passagem é importante destacar que, se a venda da primogenitura ocorrera por iniciativa única e exclusiva de Jacó, surge agora uma espécie de atenuante para a suas segundas/primeiras intenções. Agora é a mãe, com seu claro favorecimento ao filho caçula, quem comanda essa cena e instiga Jacó para que tome fraudulentamente o lugar do irmão. Esta dianteira tomada pela mãe, segundo Daisy Wajnberg, “vem funcionando como álibi para Jacó, apagando suas possíveis culpas”.
O narrador nos mostra um Jacó submisso, seguindo estritamente as ordens de Rebeca. E esta, por sua vez, somente daria continuidade aos desígnios de Deus, anunciados no oráculo do início da história. Num contínuo repasse de responsabilidades, Jacó obedece à Rebeca, que obedece a Deus. Rebeca, que toma o filho menor como objeto do seu amor, se revelaria assim como possível desdobramento do tema da escolha divina, como afirma Leslie Brisman “nesta história, as ações de Jacó têm a bênção do favor divino “naturalizado” enquanto favoritismo materno”. O tema da escolha divina já se apresentara tanto em Caim e Abel, como Ismael e Isaac. Não esqueçamos de Sara que também conspirou contra Ismael para favorecer Isaac.
O Esaú midráshico quase se torna um Caim redivivo, segundo a pesquisadora Daisy Wajnberg. Na interpretação rabínica, desde Gênesis Rabat ( escrito ao redor do ano 400 da era comum), é visível o caráter ideológico da leitura rabínica da Bíblia. Os irmãos midráshicos não coincidem exatamente com Esaú e Jacó de Gênesis – eles representam, sobretudo, os protótipos segundo os quais se confrontam Roma e Israel. Para a Wajnberg, os rabinos re-apresentam os gêmeos bíblicos sob nova faceta, fazendo incidir sobre seus rostos a luz e a sombra das questões de sua contemporaneidade.
Lentilhas da Liberdade
Em seu livro Homens sábios e suas histórias, Elie Wiesel pergunta: Mas por que Rebeca detesta tanto Esaú? O autor tenta encontrar a resposta em Rashi que explica citando os sábios talmúdicos: “ durante a gravidez Rebeca sentia um dos gêmeos se mexerem quando passava por determinado local. Nas proximidades de uma casa de estudos, quem se mexia era Jacó; nas proximidades de um templo de idólatras, era Esaú; Em outras palavras, eles começaram a brigar já no ventre materno. Intrigada Rebeca procurou Shem, o diretor da famosa yeshiva que levava seu nome. Sua explicação foi clara: cada gêmeo fundaria uma nação, e os dois não conseguiriam viver juntos; um só ascenderia quando o outro decaísse. O progresso de um significaria o declínio do outro. Por isso a piedosa esposa de Isaac favoreceu o caçula. E Deus também. O texto não prenuncia que “o mais velho servira ao mais novo”?”
Elie Wiesel se declara, embaraçosamente, simpático a Esaú. Vejamos o incidente do direito à primogenitura. Wiesel pergunta: um homem bom não hesitaria em repartir a refeição com um irmão. Por que Jacó impõe uma condição e uma condição exorbitante ainda por cima?
No entanto, segue Wiesel, o midrash critica Esaú e não Jacó. Naturalmente Esaú come e bebe para aplacar a fome e a sede. Mas o que diz o Midrash: “ele levava consigo um bando de arruaceiros para beberem juntos”. Podemos perguntar: onde o midrash encontrou pelo menos um fiapo de indício de que Esaú não estava sozinho neste momento? Por que os comentaristas são tão severos com ele? Não pronunciam uma única palavra negativa sobre a estratégia comercial de Jacó. Toda a crítica se volta contra Esaú.
O rabino Yohanan chega a afirmar que nesse dia, quando comprou um prato de lentilha, para matar a fome, Esaú cometeu 5 pecados: violentou a noiva de outro jovem, matou um homem, negou a existência de Deus, ridicularizou a ressurreição dos mortos e abriu mão do seu direito de primogênito. Francamente, contesta Wiesel, tudo isso num único dia? Em que fato o rabino Yohanan se baseou para fazer tais acusações. Wiesel afirma que, em geral, Esaú parece alvo de calúnias. Por exemplo, enquanto Jacó fica em casa, Esaú adora caçar; O termo usado é tzayid, que literalmente significa caçar. Para os comentaristas do Talmude, porém, tzayid tem outro significado: indica que Esaú era falso, mentia para o pai a fim de agradá-lo, cinicamente fingia uma devoção exagerada...
Para Daisy Wajnberg, “um autêntico coro de vozes rabínicas acusa Esaú, pois aquele que era o homem do campo, aqui “s dá livremente a todos como o campo”, diz R. Hiyya. A insinuação é que Esaú “era muito promíscuo”, conforme esclarece o tradutor. Adiante, outra prática sexual mais aberrante é levantada contra o personagem, na suposição da sua homossexualidade - e o povo agora recorre a Deus na queixa de ter de se submeter a este “que é abusado de forma imoral, como mulher”. Num recurso alusivo que parte de elementos da história contemporânea, Esaú aqui representaria a Roma “que praticava a sodomia tão frequentemente”.
Depois de uma longa separação, os gêmeos se reencontram, se abraçam e choram. Mas Wiesel chama atenção para o trecho do midrash que insiste em afirmar que as lágrimas de Esaú eram falsas, que seu comportamento afetuoso era hipócrita. Wiesel então questiona: por que então, Esaú chorou? Por que tentou morder o irmão no pescoço ao invés de beijá-lo e não pode fazê-lo por que Deus converteu o pescoço de Jacó em marfim ou mármore? Esaú quebrou os dentes? Esaú era totalmente inocente? Nesse caso, Jacó seria totalmente culpado? Wiesel afirma que essa questão é bem mais complexa porque, na realidade, Jacó não mentiu ao pedir as bênçãos paternas, pois as adquirira legalmente do irmão.
Se não bastasse o midrash, a pesquisadora Daisy Wajenberg também afirma que há momentos em que o próprio narrador é flagrado num julgamento explícito sobre as personagens. O problema incide sobre o adjetivo usado para Jacó- tam, cujo campo semântico comporta dois pólos. A palavra tam pode significar “simples”, “tranquilo”, de um lado. No outro sentido, tam traz forte carga valorativa ao se reerir a uma qualidade de cunho moral – a tradução seria “íntegro”, “honrado”, “honesto”, “justo”, “inocente”, segundo Alonso Shokel. Desta forma o narrador tenta mostrar que Jacó que habita as tendas, teria um grau civilizatório mais avançado em relação ao Esaú caçador. Este adjetivo tam ocorre nesse trecho e noutras 10 vezes, sempre no mesmo sentido, segundo o dicionário Brown-Driver-Briggs.
No livro A Alma Imoral, o rabino Nilton Bonder, outro pensador contemporâneo, afirma: “Jacó é o símbolo das transgressões que todos os seus filhos e descendentes repetirão(...) Não há dúvida de que o texto bíblico utiliza a questão da “primogenitura” de forma simbólica. Roubar a primogenitura é o que Jacó faz, o que seu filho José faz e o que se tornou o verdadeiro estereótipo do judeu. Ao longo dos tempos, povos que se consideram herdeiros “do nome da história”da civilização encontraram no judeu um usurpador da “primogenitura”. Segundo Bonder, “ Jacó representa a escolha de um novo “correto”na sua relação com um igual, com um outro”.
Voltando à filosofia espinosana calcada na ética da alegria e da felicidade. Com base nas idéias de Espinosa Esaú foi ou não foi mais livre do que Jacó? Quem era o mais feliz dos irmãos? O mais velho que talvez se sentisse desprezado pela mãe e por isso procurava viver longe de casa caçando com o pai ou o mais novo que tinha o pleno amor da mãe, mas vivia insatisfeito sonhando em ser o outro, desejando roubar a primogenitura de Esaú? Considerando a afirmação espinosana de que “a liberdade não é o livre-arbítrio da vontade, seja essa divina ou humana (...) a liberdade não é a escolha entre alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com a sua essência” (...) “Liberdade e necessidade não se opõe, mas de definem reciprocamente: são a afirmação da autodeterminação do agente quando sua ação exprime aquilo que ele necessariamente é por essência”. (CHAUI, 2011, p.69 e p. 100)., qual dos gêmeos foi mais livre? Qual deles agiu mais de acordo com sua essência? Jacó ou Esaú?
Entendo que Jacó foi livre o suficiente para praticar a transgressão. Teve a força e astúcia, o frio calculismo e a ardente ambição, o torto e o direito, o transgressivo e o meritório. Mas a sua obsessão pela primogenitura o levou para uma prisão ainda maior: o cárcere da herança divina. Ele tornou-se sucessor político do pai, chefe do clã, trouxe para ele a responsabilidade simbólica da continuidade religiosa, ou seja, de manter o pacto renovado de cada patriarca com Deus. Tornou-se Israel:
“E Jacó foi deixado só, e alguém lutou com ele até o surgir da aurora. Quando viu que não sobrepujava Jacó, esse alguém o atingiu no encaixe da coxa. Ele disse: “deixe-me ir, pois já rompeu o dia”. Mas Jacó respondeu: “Eu não te deixarei se não me abençoares”. Ele lhe respondeu: “Qual o teu nome?” – “Jacó”- respondeu. Ele retomou: “Não se chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e prevaleceste”. (Gênesis, 32:25-30).
Jacó agiu sim em conformidade com sua essência, mas até que ponto a essência de Jacó lhe era mesmo natural? Por ser o eleito sua essência já não estaria impregnada dos desejos de Deus? Até onde vão os anseios divinos e os do caçula de Rebeca na essência de Jacó? Acredito que Jacó acabou presidiário de sua própria essência desde o instante que foi gerado no útero da mãe.
Por isso, considero que Esaú foi o que mais conheceu e se deixou voar nas asas da liberdade. Mais livre no útero materno, conseguiu nascer primeiro mesmo com o irmão lhe segurando o calcanhar. Também foi bem mais ousado e libertário que Jacó. Mesmo sentindo-se rejeitado pela mãe e infeliz dentro do lar, buscou a felicidade relacionando-se com a natureza; sabendo que era o primogênito e o papel sagrado que tinha nas mãos, surpreendeu a si mesmo, numa ousada atitude de auto-traição que nos remete a passagem bíblica onde Moisés se aproxima do faraó do Egito para pedir que liberte o seu povo. Para atender ao pedido, o faraó lança um desafio: “Mostre-me algo que te surpreenda”. Os rabinos logo perguntam: “Não deveria ser: “mostre-me algo com que eu me surpreenda?” E logo respondem, esclarecendo que o faraó era o homem muito esperto e vivido e que sua pergunta estava correta. Se Moisés é alguém que deve ser respeitado tem que mostrar que é alguém que se surpreende e não alguém que surpreende os outros.
Surpreender-se é, na realidade, a maior prova de poder de um ser humano, afirma Nilton Bonder. Surpreender os outros é fazer uso dos nossos truques já dominados, surpreender a si mesmo é ser um mago diante daquele que nos julgávamos ser.” Trair a nós mesmo e nos surpreender conosco é uma demonstração de grande força e liberdade. A alma se deleita nas conquistas do assombramento pela surpresa, afirma Bonder.
Esaú subverte, surpreende e trai a si mesmo e, ao trocar Deus por um prato de lentilhas, torna-se, verdadeiramente, um homem pleno de liberdade.

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